A Essência do Simbolismo: 6 Poemas Completos de Cruz e Souza

Acrobata da Dor

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta…

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! reteza os músculos, reteza
nessas macabras piruetas d’aço…

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.

Publicado no livro Broquéis (1893).

In: SOUSA, Cruz e. Poesia completa. Introd. Maria Helena Camargo Régis. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 198

VIOLÕES QUE CHORAM…

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento…
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Boccas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azues da Phantasia bordo,
Vou constellando de visões ignotas.


Subtis palpitações á luz da lua,
Anceio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos nervosos e ageis que percorrem
Cordas e um mundo de dolencias geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem…

E sons soturnos, suspiradas magoas,
Magoas amargas e melancolias,
No sussurro monotono das agoas,
Nocturnamente, entre ramagens frias.

Vozes velladas, velludosas vozes,
Volupias dos violões, vozes velladas,
Vagam nos velhos vortices velozes
Dos ventos, vivas, vans, vulcanisadas.

Tudo nas cordas dos violões echoa
E vibra e se contorce no ar, convulso…
Tudo na noite, ludo clama e vôa
Sob a febril agitação de um pulso.


Que esses violões nevocntos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funereo,
Para onde vão, fatigadas do sonho,
Almas que se abysmaram no mysterio.

Sons perdidos, nostalgicos, secretos,
Finas, diluidas, vaporosas brumas,
Longo desolamento dos inquietos
Navios a vagar á flor d’espumas.

Oh languidez, languidez infinita,
Nebulosas de sons e de queixumes,
Vibrado coração de ancia exquisita
E de gritos felinos de ciumes!

Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lagrimas sonoras!

Quando uma voz, em tremolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para a flor deserta,
Soturna e singular da lua cheia.

Quando as estrellas magicas florecem,
E no silencio astral da Immensidade
Por lagos encantados adormecem
As pallidas nymphéas da Saudade!


Como me embala toda essa pungencia,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem azas brancas de clemencia
As harmonias dos violões que falam!

Que graça ideal, amargamente triste,
Nos languidos bordões plangendo passa…
Quanta melancolia de anjo existe
Nas Visões melodiosas dessa graça…

Que céo, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azues, que lagrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses rythmos tremulos e indecisos…

Que anhelos sexuaes de monjas bellas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recondito das cellas,
Por entre as ancias dilaceradoras…

Quanta plebéa castidade obscura
Vegetando e morrendo sobre a lama,
Proliferando sobre a lama impura,
Como em perpetuos turbilhões de chamma.

Que procissão sinistra de caveiras,
De espectros, pelas sombras mortas, mudas…
Que montanhas de dor, que cordilheiras
De agonias asperrimas e agudas.


Véos neblinosos, longos véos de viuvas
Enclausuradas os feraes desterros,
Errando aos sóes, aos vendavaes e ás chuvas,
Sob abobadas lugubres de enterros;

Velhinhas quêdas e velhinhos quedos,
Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos,
Sepulchros vivos de senis segredos,
Eternamente a caminhar sosinhos;

E na expressão de quem se vai sorrindo,
Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
E um lenço preto o queixo comprimindo,
Passam todos os lividos defuntos…

E como que ha hystericos espasmos
Na mão que esses violões agita, largos…
E o som sombrio é feito de sarcasmos
E de somnambulismos e lethargos.

Phantasmas de galés de annos profundos
Na prisão cellular atormentados,
Sentindo nos violões os velhos mundos.
Da lembrança fiel de aureos passados;

Meigos perfis de tysicos dolentes
Que eu vi dentre os violões errar gemendo,
Prostituidos de outr’ora, nas serpentes
Dos vicios infernaes desfallecendo;


Typos intonsos, esgrouviados, tortos,
Das luas tardas sob o beijo niveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando allivio;

Corpos frageis, quebrados, doloridos,
Frouxos, dormentes, adormidos, langues,
Na degenerescencia dos vencidos
De toda a geração, todos os sangues;

Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Como que feitos de um poder extremo
Para vencer a convulsão das mortes,
Dos temporaes o temporal supremo;

Veteranos de todas as campanhas,
Enrugados por fundas cicatrizes,
Procuram nos violões horas estranhas,
Vagos aromas, candidos, felizes.

Ebríos antigos, vagabundos velhos,
Torvos despojos da miseria humana,
Tem nos violões secretos Evangelhos,
Toda a Biblia fatal da dor insana.

Enxovalhados, tabidos palhaços
De carapuças, mascaras e gestos
Lentos e lassos, lubricos, devassos,
Lembrando a florecencia dos incestos;


Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridiculo das vidas,
Caricaturas tetricas e errantes
Dos malditos, dos réos, dos suicidas;

Toda essa labyrinthica nevrose
Das virgens nos romanticos enleios;
Os occasos do Amor, toda a chlorose
Que occultamente lhes lacera os seios;

Toda a morbida musica plebéa
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, molle e morna melopéa
Das valsas alanceadas, convulsivas;

Tudo isso, n’um grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorsões de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias-noites!

Siderações

Para as Estrellas de crystaes gelados
As ancias e os desejos vão subindo,
Galgando azues e sideraes noivados
De nuvens brancas a amplidião vestindo…

N’um cortejo de canticos alados
Os archanjos, as cytharas ferindo,
Passam, das vestes nos trophéus prateados,
As azas de ouro finamente abrindo…


Dos ethéreos thuribulos de neve
Claro incenso aromal, limpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levauta…

E as aneias e os desejos infinitos
Vão com os archanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta…

Vida Obscura

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto.
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

Publicado no livro Últimos sonetos (1905).

In: SOUSA, Cruz e. Últimos sonetos. Texto estabelecido pelo manuscrito autógrafo e notas Adriano da Gama Kury. Est. liter. Julio Castañon Guimarães. 2.ed. Florianópolis: Ed. da UFSC: Fundação Catarinense de Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 198

A flor do diabo

Branca e floral como um jasmim-do-Cabo
Maravilhosa ressurgiu um dia
A fatal Criação do fuIvo Diabo,
Eleita do pecado e da Harmonia.

Mais do que tudo tinha um ar funesto,
Embora tão radiante e fabulosa.
Havia sutilezas no seu gesto
De recordar uma serpente airosa.

Branca, surgindo das vermelhas chamas
Do Inferno inquisidor, corrupto e langue,
Ela lembrava, Flor de excelsas famas,
A Via-Láctea sobre um mar de sangue.

Foi num momento de saudade e tédio,
De grande tédio e singular Saudade,
Que o Diabo, já das culpas sem remédio,
Para formar a egrégia majestade,

Gerou, da poeira quente das areias
Das praias infinitas do Desejo,
Essa langue sereia das sereias,
Desencantada com o calor de um beijo.

Sobre galpões de sonho os seus palácios
Tinham bizarros e galhardos luxos.
Mais grave de eloqüência que os Horácios,
Vivia a vida dos perfeitos bruxos.

Sono e preguiça, mais preguiça e sono,
Luxúrias de nababo e mais luxúrias,
Moles coxins de lânguido abandono
Por entre estranhas florações purpúreas.

Às vezes, sob o luar, nos rios mortos,
Na vaga ondulação dos lagos frios,
Boiavam diabos de chavelhos tortos,
E de vultos macabros, fugidios.

A lua dava sensações inquietas
As paisagens avérnicas em torno
E alguns demônios com perfis de ascetas
Dormiam no luar um sono morno…

Foi por horas de Cisma, horas etéreas
De magia secreta e triste, quando
Nas lagoas letíficas, sidéreas,
O cadáver da lua vai boiando…

Foi numa dessas noites taciturnas
Que o velho Diabo, sábio dentre os sábios,
Desencantado o seu poder das furnas,
Com o riso augusto a flamejar nos lábios,

Formou a flor de encantos esquisitos
E de essências esdrúxulas e finas,
Pondo nela oscilantes infinitos
De vaidades e graças femininas.

E deu-lhe a quint’essência dos aromas,
Sonoras harpas de alma, extravagancias,
Pureza hostial e púbere de pomas,
Toda a melancolia das distancias…

Para haver mais requinte e haver mais viva,
Doce beleza e original carícia,
Deu-lhe uns toques ligeiros de ave esquiva
E uma auréola secreta de malícia.

Mas hoje o Diabo já senil, já fóssil,
Da sua Criação desiludido,
Perdida a antiga ingenuidade dócil,
Chora um pranto noturno de Vencido.

Como do fundo de vitrais, de frescos
De góticas capelas isoladas,
Chora e sonha com mundos pitorescos,
Na nostalgia das Regiões Sonhadas.

Tristeza do Infinito

Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.

Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh’alma se asila.

Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda parte sonhando.

Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como…
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.

Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas…
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.

Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas…

Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.

Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.

Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.

Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.

Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.

Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério aflito,
torturante, formidável…
ah! tristeza do Infinito!

(…)

Publicado no livro Faróis (1900).

In: SOUSA, Cruz e. Poesia completa. Introd. Maria Helena Camargo Régis. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 198

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